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Dia vazio

quinta-feira, 7 de junho de 2012




A receita da melancolia: você mora só e está só. Se você temperar isto com um dia de feriado longe de casa, obtém um prato amargo de desespero. Dia de Copus Christi. Seria dia de ir à missa como um bom cristão. Mas, meu Deus, minha fé cambaleante na instituição Igreja anda meio estapeada. Corpo triste.

Solução para isso é rejeitar essa refeição, preparada por e para si mesmo. Dormir, hibernar. Estudar é vão. Mas vamos, ajeite o quarto bagunçado, lave roupas sujas! Coragem de falta para quem mora só. Programe um cinema num festival - mas sozinho não dá mais. Programe comprar roupas e calçado novos. Programo, mas não cumpro: durmo.

Acordo à tardinha, o quarto estava num tom amarelo filtrado de raios de sol. Coisa que dura pouco tempo, a depender de como o Sol se entende com as nuvens, com o movimento de translação da Terra e com as construções do homem. Coberto com fino cobertor, a única coisa que se movia era o ventilador, que balançava o cabelo, o lençol e partículas suspensas de poeira. Outra coisa que sonharia que se movesse, nesse momento, seriam dedos fazendo cafuné, corpo a corpo com quem se gosta.

O sono bem dormido dá mais ânimo. É um calmante sem preço, sem efeito adverso. Álcool, barbitúricos e benzodiazepínicos, esses infames depressores que interagem com nossas moléculas, sentem inveja de explorar nosso corpo tão bem quanto o sono natural.

Poderia eu buscar fazer algo pra posteridade. Voltar a desenhar, aprender a pintar. Voltar a escrever naquele velho caderno. Tudo, menos tentar ligar a tevê e ver a cobertura do mais novo assassinato e acabar com a magia do momento. Decido por voltar a ler o interminável - ainda bem! - Drummond. Isso, esse velho poeta é sempre uma boa pedida.

Pois hora mais triste
ainda se afigura;
ei-la, a hora pequena
que desprevenido
te colhe sozinho
ou na rua ou no catre
em qualquer república;
já não te revoltas
e nem te lamentas,
tampouco procuras
solução benigna
de cristo ou arsênico, 
sem nenhum apoio
no chão ou no espaço,
roídos os livros,
cortadas as pontes,
furados os olhos,
a língua enrolada,
os dedos sem tato, 
a mente sem ordem,
sem qualquer motivo
de qualquer ação,
tu vives: apenas,
sem saber por quê,
como, para quê,
tu vives: cadáver,
malogro, tu vives,
rotina, tu vives
tu vives, mas triste
duma tal tristeza
tão sem água ou carme,
tão ausente, vago,
que pegar quisera 
na mão e dizer-te:
Amigo, não sabes 
que existe amanhã?
Então um sorriso
nascera no fundo
de tua miséria
e te destinara
a melhor sentido.
Exato, amanhã
será outro dia.
Para ele viajas.
Vamos para ele.
Venceste o desgosto,
calcaste o indivíduo,
já teu passo avança
em terra diversa.
Teu passo, outros passos
ao lado do teu.
O pisar de botas,
outros nem calçados,
mas todos pisando, 
pés no barro, pés
n'água, na folhagem.
Pés que marcham muitos, 
alguns se desviam,
mas tudo é caminho.
Tantos: grossos, brancos,
negros, rubros pés,
tortos ou lanhados,
fracos, retumbantes,
gravam no chão mole
marcas para sempre:
pois a hora mais bela
surge da mais triste.

Drummond, esse conselheiro. Sou interrompido por uma ligação. Minha mãe diz que minha sobrinha aprendeu a cantar sua primeira canção de números. Pena que minha princesinha, sempre que pega no celular, se impressiona com a cor vermelha daquele botão e desliga a chamada, antes de minha mãe pedir pra ela dizer Tio Dim!? Aí você sabe, para conseguir outra ligação nessas operadoras telefônicas é uma luta.

Transporto-me pra casa. Estou entre os meus. Ao som de músicas infantis, ouço risos de avós, tios e pais que paparicam o sentido daquela felicidade.


Mais um feriado se vai e espero por outro. Em outra ocasião: mais próximo, sentindo na pele, vivendo o que a vida tem de melhor. Próximo de quem amamos.
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Chico Anysio, mestre do humor

sexta-feira, 23 de março de 2012


Estava voltando hoje da faculdade quando escutei, em meio ao trânsito caótico da avenida Treze de Maio, o nome de Chico Anysio. Vinha de uma tevê, parei e li o rodapé: "Morre o mestre do humor..." Como bairrista, cearense que sou, senti por isso.


Da sua carreira, só peguei a ponta do iceberg da criatividade de Chico. Nas tardes infantes, assistia a Escolinha do Professor Raimundo, merendando Pipofloc's com Cajuína. Eram tardes deliciosas de infância, mesmo sem entender a maioria daquelas piadas prontas ou de segundo sentido. Mas achava engraçado aquele professor de cabelo branco e bigode, uma versão risível e penteada de Einsten que, com voz rouca, falava de salário baixo a cada final de programa. Inteligência crítica aliada ao humor. Coisa de gênio.


Talento é uma coisa rara, veja só. Se naquela época o fim da tarde era preenchido com bom humor, por vários artistas hoje memoráveis, hoje o que temos na grade de programação? Malhação? Ah, vá! Será uma bela recordação para os saudosistas de amanhã. Ironicamente falando, claro.


Ao assistir reportagens especiais do Chico hoje, parando pra ver sua trajetória, senti aquela trava na garganta, e ainda assim soltei risadas engasgadas com alguns de seus momentos. Me emocionei com seu legado. Humorista, ator, dublador, escritor, compositor e pintor. Um cearense, grande por natureza, que fez com seus duzentos e tantos tipos, o que o Ceará tem de melhor: o humor. Apesar de não ir nada muito bem. Aqui no Ceará, não vemos a resolução dos nossos problemas sociais e ganhamos um Acquario em troca disso. Fazemos piada.


Descanse em paz, Chico.


Sim, ele também pintava (Chico Anysio, exposição na LBV).
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Peças da Vida

sábado, 10 de março de 2012


            A vida nos prega peças. Tudo pode acontecer nela. O que idealizamos e nem imaginamos passa por seu crivo. Quem diria que hoje estaríamos do modo que estamos? Quem nos garante que as coisas ao nosso redor não poderiam ter outro sentido? São incessantes os giros da roda viva da vida. Nada fica suspenso.
            As decisões nunca seguem um fluxograma do que esperamos. Há cinco ou dez anos, não imaginaria estar fazendo o que hoje faço. Não imaginaria que as coisas tomassem esse sentido na minha vida em particular e, talvez, na das pessoas que me cercam. Faço essa pergunta a você: imaginaria que as coisas seguem um sentido lógico, que elas estão do modo que esperamos , impassíveis de erro, persistentemente inalteradas? O que você queria há uns anos, tem-se realizado profissionalmente e amorosamente? O que mudou? O que poderia ter mudado? E o melhor: o que poderia ter continuado?
            Nos prega peças, essa vida. Somos jogados num oceano de probabilidades, de desejos, de decisões e indecisões. Mergulhamos num Universo real, que às vezes pode ser surreal e que poderia ser paralelo. Acasos e ocasos. Ocasos e acasos. Não medimos o que aconteceu no passado que nos deu esse presente e não temos controle do futuro.
            Quem diria? Quem diria que hoje você estaria a mais de quinhentos quilômetros de casa? Que seu melhor amigo de infância estaria em outro estado? Que você teria amigos hoje morando no exterior? Que você não acompanharia de perto as mudanças na família? Que um amor que você já teve se esvairia de um modo bobo? Que você se sentiria só e inseguro diante das intolerâncias do mundo? Que você perderia entes queridos precocemente? Que você não ganharia o presente que você sempre quis? Quem diria, enfim, que você estaria hoje como está?
            Mais feliz? Bem! Mais ou menos? Lute!
            Pelo sim pelo não, apesar das peças da vida, das “pedras no caminho” de Drummond, “lute como um bravo”, como já disseram uns roqueiros californianos. Seja transparente nos seus valores, busque o que seu coração pede, sendo você mesmo(a). Lembre-se que um rapaz latino-americano vindo do interior cantou que, apesar de tudo ser proibido, “tudo é divino, tudo é marivilhoso” (ou que podemos contrariar isso) e que um argentino, que foi o cara mais latino-americano de todos, esbravejou que devemos “amadurecer sem perder a ternura”. Jamais.
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"Não importa"

sexta-feira, 28 de outubro de 2011


Há 20 anos, foi lançado o disco que mudou a minha vida. Chama-se Nevermind. Precisa dizer de qual banda é?

Uma capa tão intrigante quanto as músicas do disco.

Em comemoração a essa data especial, foi lançado em DVD um show memorável deles em Paramount, na cidade de Seattle, no Halloween de 1991, que estou assistindo nesse exato momento que vos escrevo. No ano desse show, eu estava com apenas uma copa do mundo de idade. Só fui descobrir Nirvana depois do fim da banda, depois que Kurt se suicidou (?) e depois que ele virou a lenda do rock.

Nirvana, Kurt Cobain... Substantivos que me remetem aos devaneios da juventude.

Cabe aqui contar a história de como descobri Nirvana e comecei a gostar de rock. Era final do século XX (falando assim parece até que faz muito tempo), quando meu irmão mais velho me presenteou com a exorbitante quantia em dinheiro de 50 reais. Nunca me esqueci desse fato. Um moleque com cinquenta contos na mão era que nem uma fortuna. Não sabia nem o que fazer. Fui ao centro da cidade, coração a mil, à procura de algo pra me presentear. Entrei numa loja de CD’s (algo bem diferente dos padrões de hoje). Eu não tinha gosto musical definido, poderia até ser que eu comprasse um disco de forró ou de pagode - que são coisas que escutamos por osmose em cidades do interior. Mas não! Naquele momento, me veio um estalo na memória. Um primo meu falava de bandas que, na minha alma curiosa, estaria pronto para desfrutar de seu som. Lembrei-me de um tal "Nirvana". Pedi ao atendente para me mostrar alguma coisa deles e, mesmo ele descrente de que venderia alguma coisa naquela tarde a um garoto com espinhas no rosto, trouxe o álbum com aquele "bebê-com-o-pinto-à-mostra-submerso-na-piscina-atrás-da-nota-de-1-dólar".  Nunca tinha escutado e nem pedi pra escutar lá na loja. Aliás, pedi mais outro álbum da banda. Saí de lá com troco no bolso e uma sacola na mão com o nervoso Nevermind e o suave acústico Unplugged In New York. Espécies de yin-yang de uma banda.

Até hoje entre os melhores discos que me acompanham.

Pronto. Foi o estopim pra estourar os fones do microsystem do meu irmão do meio. Era volume no máximo todo dia. Era Smells Like Teen Spirit, Come As You Are, In Bloom, Polly, Drain You... Nossa! Nevermind não tinha nenhuma música ruim! Pra acalmar os ânimos, deixava rolar o Unplugged e eu sentia um barato que não sentiria até então escutando músicas de outrora. A influência de Nirvana foi tão grande que, desde os tempos de mIRC até hoje, tenho e-mail com nick "nirvaneiro".

Foi o estopim também para se anarquizar um estilo de vida na adolescência. Cabelo grande assanhado, all star riscado e sonho de ser rock star. De querer tocar contra-baixo de maneira simples, de querer abrir a boca às indiferenças que fui descobrindo no mundo... Indiferenças essas que, até hoje, engolimos em seco.

Bem, mas falando de música, depois vieram os Red Hot Chili Peppers, Guns N’Roses, Ramones, Beatles, Police, Pink Floyd... Fui me ligando também no Rock Nacional de bandas criadas nos anos 80 e me apaixonando cada vez mais por música ao redescobrir o quão barato também é a MPB. Não sou muito ligado no que tem de novo, geração 2000, mas ficando com meus persistentes dinossauros do rock já está de bom agrado aos ouvidos.

Encerro esse texto aqui, no momento em que Kurt, Krist e Dave destroem seus instrumentos no palco e me dá uma vontade de praticar esse ato de vandalismo com aquele meu baixo de cordas enferrujadas encostado na parede do meu quarto. Mas lembro que tenho que estudar pra prova de faculdade e que isso não passa de resquícios de memória de um devaneio da juventude.

Bart, parodiando Nevermind, sem pinto à mostra, atrás de sua nota de 1 krusty.
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Juazeiro do Norte, 100 Anos

sexta-feira, 22 de julho de 2011


Assim começa uma guerra...
Povo nobre e altivo do Crato, peço permissão para falar sobre o povo imundo do Juazeiro, que vive guiado por Satanás.

Essa frase bombástica foi proferida por um vigário pertencente a uma comitiva pastoral que visitava o Crato, pouco antes de Juazeiro do Norte – à época Joaseiro – sagrar-se independente. Foi o marco embrionário para a eterna rixa entre cratenses e juazeirenses.

Sabia-se que o povoado de Juazeiro estava sendo extorquido pelo Crato. Eram pesados os impostos cobrados e o retorno era por demais insuficiente para acompanhar o crescimento vertiginoso de Juazeiro. O embate editorial entre os jornais de Juazeiro – O Rebate – e de Crato – O Correio do Cariri – eram fervorosos. Uma verdadeira convocação para guerra.

Juazeiro estava levantando a bandeira da independência. “Morrer ou vencer pela liberdade de Juazeiro.” Após frustradas tentativas diplomáticas de tornar-se independente do Crato, foi necessário recorrer às preces e à pólvora. O povo de Juazeiro estava armado: rifles, espingarda, cacete, punhal e reza, muita reza. Crato até preparou exército para cobrar os impostos atrasados dos insurgentes. Quando viu a cena de um povo armado até os dentes, arregou. O jeito era fazer um acordo de paz entre Juazeiro e Crato que pusesse fim naquele barril de pólvora. E assim aconteceu: em 22 de julho de 1911, a Lei 1 028 foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Ceará e criou a vila autônoma do Juazeiro.

...e o começo de uma nova história
A guerra não acabou por aí e o problema agora se tornou interno. Quem seria o novo prefeito de Juazeiro? A lista era grande e despontavam figuras ilustres: doutor Floro Bartolomeu, padre Alencar Peixoto, major Joaquim Bezerra... A briga foi intensa pela liderança do novo município. 

Contracorrente, o ponto final foi dado pela figura mais ilustre de todo o Ceará. Padre Cícero Romão Batista, o padim Ciço, nomeou-se prefeito da nascente e promissora Juazeiro. Isso provocou a fúria de alguns pretendentes ao cargo e a devoção dos fieis seguidores do santo do sertão.

E já se passaram 100 anos desde então. Juazeiro do Norte guarda outras grandes histórias dignas de memória, estudos e filmes. Uma cidade riquíssima culturalmente e mística por excelência, no berço do Cariri.


Hoje, Juazeiro do Norte é a maior cidade do interior cearense, mesmo tendo um território cinco vezes menor que o do Crato. Tem quase 250 mil habitantes e continuar a crescer vertiginosamente. A árvore que lhe emprestou o nome, Ziziphus juazeiro é tal qual essa cidade centenária: símbolo de resistência (por continuar viçosa mesmo em meio à mais rigorosa seca) e acolhimento (por sua copa frondosa que oferece agradável sombra em meio ao mais tórrido sol). 


Como diz o Hino do Centenário,


"Teu passado, Juazeiro, é glorioso.
Teu presente um pujante florescer
Teu futuro é grandioso
Construído com trabalho e com fé."

Dá-me um orgulho danado ter nascido nessa terra. E ter começado a minha história aí.

Contagem regressiva zerada... O que fazer com a obra mais representativa do centenário de Juazeiro?
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Bloco de notas

quarta-feira, 22 de junho de 2011


Esse foi o título que dei para um antigo álbum de fotos, na época do Orkut. Nele, postava arquivos escaneados de desenhos com caneta porosa preta em um pequeno bloco de anotações.

Eu simplesmente abria o caderno em uma página em branco qualquer, soltava a imaginação e começava a rabiscar. Fiz aqui um revival com alguns dos desenhos já postados antes, seguidos de suas antigas legendas. Reabrir esse velho bloco de notas com preto-no-branco me fez rememorar e dividir, com quem quer que seja que estiver lendo e observando, esses meus traços. 

Essas são algumas de minhas ideias aleatórias instantâneas transmutadas em papel e agora em kbytes de memória.


Para ver ampliado, clique na imagem desejada.

Blarght!

Construção da Sociedade

De Seu Êxito À Janela De Exit, Ou O Sentido da Vida

Dreamroom

O Que Todos Querem Por Querer

Palavra De Quatro Letras, Começando Com A Letra "A"

Política De M*rd@!

Recado Dado

Zzz
PS: Todos os desenhos acima são de minha autoria, sem nenhum Copyright. Pode plagiar à vontade. Criação não é coisa feita por um só. Tudo deveria - idealmente - ser de todos, sem apoderação nem custeio de nada por ninguém.
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Eu, os cachorros e uma gata

sexta-feira, 10 de junho de 2011



Na infância, naturalmente, simpatizamos com cãezinhos. E isso pode perdurar durante anos. Ou não.

Tenho boas e más recordações de meus bichos de estimação. Tive três cachorros, machos mesmo, porque sempre diziam que criar fêmeas dava um trabalho imenso. Faço uma ressalva afirmando que simpatizo em número e grau com fêmeas, a priori da espécie humana. A espécie feminina é a razão e o prospecto do viver masculino.

Mas vamos falar um pouco dos meus estimes cães e minhas estórias desoladoras precedidas de animadoras vivências. Meu primeiro cachorro se chamou Afi, criativo nome advindo das iniciais dos nomes da minha família. Nome cativante, não? Afi era um cachorro serelepe, tinha cor branca e inconsequentes pintinhas pretas. Não era um dálmata, era mais pra vira-lata mesmo. Sei que tinha um charmoso anel de pêlos pretos circundando seu rabinho sempre indo pra lá e pra cá. Esse meu primeiro animal de estimação me trouxe a alegria de viver em empatia pelos bichos. Morreu precocemente, sufocado em uma garrafa pet de meia banda. Trágico.

Meu segundo cão se chamou Ralph. Era da raça cofap, rebento de uma cadela de um amigo do meu pai. Foi um caso de simpatia. Seu pêlo marrom brilhante e rente possibilitava horas de brincadeiras. É que logo nesse tempo de infância, desenvolvi uma alergia precoce a pêlos de animais, uma típica bronquite juvenil. Ralph era enérgico, desbravador. Quando ele via as portas da casa abertas logo cedo, saia desembestado, sem destino. Um dia, eu indo pra minha escola primária, escutei um grunhido doloroso. Vi um caminhão passando pela rua e, lá atrás, estava Ralph, estendido e imóvel no chão. Estava acordado, ofegante, mas não se levantava. Eu, quando olhei, tive o impulso de pegá-lo em meus braços. Num ato de desespero, Ralph se jogou, tilintando em dor, e abocanhou minha bochecha. Até hoje, essa mordida deixou uma sutil marca próximo ao meu lábio superior. Mal sabia eu, naquele momento, que Ralph tinha sido atropelado pelo caminhão que eu tinha visto momento antes. Não havia sangue nele. Eram seus ossos que estavam bem machucados. Depois dessa, tomei vacina anti-rábica no bumbum. Ralph, meu cão querido, não resistiu, apesar do socorro veterinário.

O terceiro cachorro foi o que durou mais. Chamou-se Lyon, nome pouco criativo, é verdade, porém típico de cão. Já foi em tempos de adolescência. Eu jurei cuidar do cachorro, responsabilizava-me por qualquer um de seus deslizes, incluindo seus incomedidos processos fisiológicos borrões. Lyon era pra ser um Cocker spaniel cor caramelo, mas restou-me um pretinho. Seus pêlos eram negros feito carvão. Decidi que era ele mesmo que eu queria. Foram deliciosos anos. Ele era bastante inteligente. Ninguém acredita, mas eu chegava da escola, deitava no sofá, tirava meu tênis, e Lyon, sorrateiramente, levava meu tênis, um por um, da sala até meu quarto, e colocava o par bem juntinho. Era impossível não amá-lo. Mas eu pequei, eram raras as vezes em que eu o levava pra passear. Ele ficava meio solitário no quintal. Em casa, seus bolos de pêlos eram constantes, levitando no ar e se acomodando nos canteiros do chão. Apesar de cuidados extemporâneos, sofri um duro golpe: minha mãe deu Lyon para uma tia criar, sem aviso prévio para despedida chorosa. Foi um dos duros momentos de amadurecimento pessoal, na minha opinião. Meu único alívio foi imaginar que lá na casa dessa tia existia um campo aberto para ele correr e cadelas de várias raças para ele se divertir. Era um paraíso canino para ele, antes de seus últimos dias terrestres.

Três histórias com desfechos tristes, mas que me renderam amor aos animais. São histórias de vida, também. Por que sabemos bem o que a vida nos reserva em seu ciclo. E, assim, desde cedo, pude aprender.

Tiveram outros cães que me marcaram. Um em especial, de rua mesmo, é memorável. Ele, ou melhor, ela, que era uma cadela chamada Baleia. A personificação ideal e real da "Baleia" em Vidas Secas de Graciliano Ramos. Certas célebres vezes, andei, de madrugada, na retilínea rua São Francisco, em meu Juazeiro, sob luzes alaranjadas de postes. Baleia me acompanhava fielmente. Um assobio fazia-a correr. Era superprotetora na imensidão silenciosa da noite no centro da cidade. Acompanhava-me em cada passo. Se eu desse uma volta correndo no quarteirão, lá estava ela, de língua pra fora - assim como eu, de tão cansado - me acompanhando. Nostalgia marcante dessa época também.

O que me influenciou a contar essa história foi chegar em meu apartamento, ver um bichano da calçada me acompanhar, sentar na escada, e esperar receber carinho de mim. Pouco tempo depois, ronronou. Uma gata, sim, essa histórica inimiga declarada de cães, me fez escrever esse memorando canino. Lembrei nitidamente do quão bom foi minha experiência com cachorros. E, também, o quanto me faz falta ter um aqui, agora, pertinho de mim, cochilando perto de meus pés enquanto escrevo essa estória saudosa. A história de Marley & Eu, em triplicata, perde feio.
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